terça-feira, 30 de junho de 2009

"Germinal", Émile Zola

O retrato social e natural dos mineiros franceses em um marco na literatura naturalista. É assim que posso começar a definir o genial "Germinal", de Émile Zola. O livro, lançado em 1885, mostra a vida e a miséria em meio a uma mina de extração de carvão. Lá, Etienne, recém-chegado, busca abrigo e emprego, e, com suas ideias revolucionárias e socialistas, tenta mobilizar os mineiros em busca de maior igualdade.

Mas Etienne não é o personagem principal do livro. Nem Chaval, Catherine ou Maheu. O personagem principal é a própria mina e as situações que a permeiam.

O livro é naturalista em sua essência. Conseguimos perceber, através da leitura, todos os pontos principais do movimento. A situação de pobreza e miséria parece não ter início e nem um fim: é uma situação constante e atemporal. No mesmo sentido, os personagens parecem conformados com sua situação de trabalho excessivo, fome e falta de espaço, como se isso fosse inevitável e inerente à sua natureza. Ali ninguém pensa em enriquecer ou em tentar um emprego melhor. Até porque a fome urgente e as obrigações no trabalho conseguem interromper qualquer linha de pensamento.

Mas deixarei de lado as definições naturalistas presentes no livro e passarei a narrativa propriamente dita. A escrita de Émile Zola é envolvente, e, mesmo que algumas vezes possa se tornar excessivamente descritiva, consegue transmitir com clareza suas propostas. Com as palavras, conseguimos sentir o sufoco das minas e das casas de um cômodo com catorze moradores; sentimos arrepio ao ver que eles não terão o que comer no dia seguinte, ou quando vemos que a mesma borra de café está sendo usada durante toda uma semana. Vemos, a todo momento, os traços de selvageria presentes na narrativa. Ali, o homem é como um animal (teoria Darwinista) e, como tal, suas ações eram produto de seus instintos.

"Estava feito; ele tinha matado. Confusamente voltavam-lhe à memória todas as suas lutas, esse combate inútil contra o veneno que dormia nos seus músculos, o álcool lentamente acumulado da família. E no entanto só estava ébrio de fome, mas o longínquo alcoolismo dos pais bastara para matar. Seus cabelos eriçavam-se com o horror daquele assassinato, e, apesar da revolta da sua educação, uma alegria fazia pulsar seu coração, a alegria animal de um apetite enfim satisfeito. Em seguida sentiu orgulho, o orgulho do mais forte. Surgiu-lhe uma visão, a do soldadinho apunhalado, morto por uma criança. Ele também havia matado."

- Germinal, trecho


Outra coisa que incomoda - no bom sentido da palavra - é o contraste social. Enquanto nas minas (onde a maioria do livro é ambientado) a situação é precária e urgente, na casa dos burgueses tudo anda as mil maravilhas. As mulheres usam vestes trabalhadas e caras, comem e desperdiçam, parecem bonecas de porcelana. As filhas do dono da mina, com 19 e 21 anos, parecem crianças na forma de falar e se comportar, enquanto que nas minas, as meninas, com 13 e 14 anos, já se submetem a trabalhos pesados e ao sexo desenfreado nas festas dos mineiros.

Germinal é um marco não só na literatura naturalista, mas sim na literatura mundial de um modo geral. Um genial retrato de um mundo permeado pelas desigualdades sociais e pelo conformismo.

segunda-feira, 22 de junho de 2009

Anel de Fogo

“Eu caí num anel de fogo flamejante
Eu fui caindo, caindo, caindo
E as chamas ficaram maiores
E isso queima, queima, queima
O anel de fogo
O anel de fogo”

- Johnny Cash

As chamas aproximam-se na medida em que o vento sopra. Meus olhos brilham o reflexo alaranjado; a fumaça da grama seca carbonizada tenta asfixiar meus pulmões, mas a noite estrelada e seu ar puro ainda predominam sobre mim. Só não sei durante quanto tempo.

O anel de fogo se estreita.

Tento em vão me desprender da cadeira. As pernas dela estão completamente enterradas no chão, e eu estou amarrado firmemente, numa complexidade de nós impossíveis de serem desfeitos. Olho para os céus, pedindo clemência divina. Um milagre, por favor. Faça um querubim descer dos céus e me desprender daqui, é tudo o que peço. Depois rio de mim mesmo. Por que apelar agora, se nunca acreditei em Deus? Sou uma porra de um hipócrita, é isso o que eu sou.

O vento sopra. Sei que ele é frio, mas tudo o que sinto é o calor das chamas aproximando-se. O cerco está se fechando sobre mim.

De todas as formas de morrer, nunca pensei em alguma coisa como essa. Pensei em morrer com uma bala no peito, um ataque do coração, um suicídio ultrarromântico e dramático, ou quem sabe um assassinato que intrigaria os investigadores – todo aquele lance à la Agatha Christie. Nunca pensei em morrer assim, preso e incapaz, sentado em uma cadeira sem pernas, tentando inútil e pateticamente me desprender. Esperando o fogo consumir minha pele e meus ossos, numa agonia dolorosa que duraria muito mais do que eu poderia imaginar.

Não, eu não podia morrer dessa forma.

As palavras dela voltaram a assombrar meus pensamentos: “sua morte será o pagamento daquela que você causou”. A voz havia sido firme e decidida, com ódio implícito em cada nota. A desgraçada me colocou aqui e depois ateou fogo ao campo. Desculpa perfeita: preparar o solo para a plantação. A filha da puta nunca plantara sequer feijão em algodões, mas essa é a prerrogativa de uma filha de fazendeiro. Ela tinha o ódio necessário para cometer um crime. E eu, o que tinha?

Dúvida, culpa e medo.

Dúvida: por que tanto tempo depois? Não me orgulho do que fiz na época de moleque, mas sei que isso não é justificativa. Mas seis anos depois? Os fantasmas ainda assombravam meus pensamentos, mas eu poderia pensar em qualquer outra coisa. Poderia listar uma infinidade de nomes inimigos, mas ela não estaria nem entre os cinquenta primeiros. Na verdade, ela não estaria na lista de forma alguma.

Culpa: a morte de Luciana. Tomo-a completamente para mim; sei que ninguém mais pode se responsabilizar pelo que aconteceu. Coisas da vida, alguns diziam para mim no dia do enterro – estava tão tonto que nem mesmo sei como lembro –; outros diziam que eram fatalidades, coisas que a gente não podia prever. Mas eu sabia que estavam mentindo. Parecia que eu podia ouvir o que cada um pensava. Cantavam um coro silencioso: ASSASSINO, ASSASSINO, ASSASSINO. A imagem da arma disparando acidentalmente passava em loop na minha cabeça. O tiro, o cheiro de pólvora, o calor do sangue respingado no meu rosto. O tiro, o cheiro de pólvora, o calor de sangue respingando no meu rosto. O tiro...

Medo: apesar do fogo, não tinha medo da dor ou da agonia, nem mesmo da morte. Tinha medo do encontro com Luciana, que eu sabia ser inevitável. Medo do olho no olho, da forma como ela me encararia. Estou com medo de uma alma aterrorizada.

Meus pais e parentes suportariam a dor da minha perda: não seria a primeira nem a última. Mas eu não suportaria encontrar Luciana e tentar me justificar. Ela tinha mais do que amor pela vida: tinha tesão. E eu, como um ceifador inconsequente, simplesmente tirei esse direito dela. Não importa se acidentalmente ou não, o meu fantasma particular sempre estará sussurrando verdades inconvenientes em meus ouvidos. Não poderia me perdoar, mesmo que tivesse esse direito.

O anel agora é estreito. Começo a sentir o suor escorrer por baixo da minha camisa. O ar me sufoca, piedoso, tentando me desacordar antes que o fogo faça seu trabalho maquiavélico de morte. Tento não sucumbir, mas é cada vez mais difícil manter-me acordado.

Então ela chega. Com um vestido de fogo e os cabelos lisos, voando sobre uma fênix com ao menos dez metros de envergadura. A ave pia estridentemente, fazendo meu sangue congelar, mesmo com todo o calor. Ela desce em meio à dança desenfreada do fogo. Suas pegadas fazem marcas no chão ainda imaculado.

Ela tem uma arma nas mãos. Meus olhos querem se fechar, minha respiração quer falhar, mas faço tudo o que posso para não desmaiar sem que ela fale comigo. Porém, ela não fala. Limita-se ao direito do silêncio, vendo minha expressão débil de incapacidade.

Quando ela puxa o gatilho, eu ainda tento – inutilmente – me justificar. Então as coisas acontecem numa velocidade incrivelmente rápida: a bala aproxima-se de mim, mas eu não tenho a capacidade de desviar. Vejo-a se aproximando e não movo um músculo sequer.

Então sucumbo, morto. O fogo toma conta do cenário, mas já não sinto dor. Não grito de desespero nem de agonia, para a decepção de minha algoz.

Ela carrega minha alma nas asas da fênix e sorri para mim. É quando percebo que ela ainda me ama.

Agora posso amá-la sem preocupações. Eu a matei e ela me matou. Estamos quites.

quarta-feira, 17 de junho de 2009

Falso poema preocupado com o futuro das palavras

Um grito de liberdade! [...]
Expresso por teclas dum computador
Meus desejos e meus anseios
Transpostos em códigos binários

01110101010110101
101010101
1010101
10101
101
10
1
01
101
1010101
101010101010
10101010101010100

BAT MACUMBA!

Me enganaram, minha bandeira é uma flâmula
Meus sonhos são pó
Minha vida é uma farsa!
E tudo o que me resta são os versos
Não restam?
Tenho licença para ser quem eu quiser nas palavras
Posso ser louco, posso ser incoerente
Os outros lerão e pensarão
- Criatura inteligente, cheia de subjetivismos!
E tentarão achar significados em meus códigos binários
Inventarão mil teorias e me farão rei das letras!
E eu - morto que estarei - não poderei voltar para dizer-lhes que estão errados
Que os números são aleatórios, que o verso é pobre
Que não sou inteligente, que não sou poeta
Eles estarão embriagados!
Enlouquecidos por um falso poeta
Envaidecidos por uma poesia - considerada - original!
Quando na verdade ela é pobre de espírito e sintaxe
Feia e esquisita, sem sentido
Sem preocupações sintáticas ou semânticas
Estão carentes! Querem poesia!
Dou-lhes poesia!
Pobre que sou! Ainda creio que mais de dez pessoas possam ler e admirar isso.
Ah, doces ilusões de um jovem poeta...

segunda-feira, 15 de junho de 2009

Plano de Fuga

A proposta desse conto era a seguinte: deveria começar com a frase "Ela não sabia onde estava." e, no meio da história, deveria existir uma CAIXA AMARELA. Escrevi esse conto - que pretendo continuar. Espero que gostem:

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Ela não sabia onde estava. Abriu os olhos de súbito, acordando assustada. Não se lembrava do que havia acontecido na noite anterior. Lembrava-se apenas do coração batendo rápido demais e a respiração ofegante. Sim, era isso. Ela estava fugindo de alguma coisa, ou de alguém. As lembranças eram turvas e nebulosas demais para que ela pudesse colocá-los em ordem
.

Levantou-se lentamente, sentindo o corpo inteiro doer. Onde diabos estava, por todos os deuses? Esfregou os olhos, olhando para cima. Via, no céu, pontos de luz branca que pareciam sóis. Contou dez, pelo menos. Mas, mesmo com toda aquela claridade, o lugar parecia lúgubre e soturno.

- Olá. – disse uma voz asmática e envelhecida.

Os pelos da nuca dela levantaram-se. Virou-se, assustada. O som daquela voz pareceu-lhe hostil demais; no entanto, a curiosidade de descobrir seu interlocutor foi maior do que o medo e o instinto de correr dali o mais rápido possível.

No fim, não havia motivos para medo. Quem falava era um velhinho de barbas cheias e acinzentadas. Tinha os olhos remelentos e um sorriso amarelado; sustentava-se de pé graças a uma bengala de madeira. Ao seu lado, um gato aninhava-se entre suas pernas, miando baixinho.

- Olá. – ela respondeu automaticamente, deixando de lado toda a dúvida e medo para dar lugar à boa educação.

- Como te chamas? – ele perguntou, coçando o queixo.

- Anna. – respondeu. – E você?

- Daniel.

O gato correu até as pernas de Anna para analisá-la. Cheirou-lhe os pés e logo correu de volta ao seu dono. Anna podia jurar que o vira sorrindo, mas logo esqueceu da ideia. Gatos não sorriam.

- Ele gostou de você. – disse Daniel. – Se chama Zâner. É meu filho.

Ela estranhou, franzindo o rosto.

- Antes de chegarmos aqui ele era um meninote muito do esperto. Mas quando chegamos, por algum motivo ele se tornou um gato.

- O senhor está falando sério? – ela perguntou, com um meio-sorriso no rosto. Até o momento, achava que ‘filho’ não significava nada além de um título que um velho solitário dera a seu bichano de estimação. Mas, ao que parecia, aquela bola de pelos era realmente o filho do velho Daniel.

- Certamente que estou, menina. – ele disse. – Por acaso sabes como chegaste aqui?

- Não faço ideia. Pode-me dizer onde estamos, para começo de conversa?

- Ah, se eu soubesse disso seria o homem mais afortunado desse lugar! – ele sorriu antes de continuar. – Não somos os únicos aqui, se te interessa saber. O acampamento não fica muito longe.

- Então o que está fazendo andando por aqui?

- É minha vez de procurar por lenha. Vamos, me ajude! Assim chegaremos mais rápido ao acampamento.

Mesmo com todas as dúvidas e desconfianças, ela aceitou ajudá-lo. Era melhor do que continuar ali, vagando sozinha naquele lugar estranho, onde não conhecia ninguém.

Colheram lenha rapidamente. Apesar do fato de que não havia sinal algum de árvores, o chão estava repleto por pequenos pedaços de madeira, como se um pássaro gigante tivesse se dado ao trabalho de criar um ninho por ali, deixando toda aquela madeira para os dois colherem. Em menos de dez minutos, Anna e Daniel estavam com as mãos repletas de lenha, o bastante para abastecer uma fogueira ininterruptamente por pelo menos cinco dias.

- Há quanto tempo o senhor está aqui? – perguntou Anna, enquanto os dois seguiam seu caminho até o acampamento.

- Ah... – ele disse, perdendo o olhar em algum lugar distante. – Tempo demais, se queres saber. Quando cheguei aqui, nem barba tinha ainda! E olhe como já estou!

- E como veio parar aqui?

- Não faço a mínima ideia. – ele disse, sorrindo. – Já faz tanto tempo que nem mais me preocupo com os motivos. Só me preocupo em sair daqui o quanto antes.

- O senhor já tentou ir embora?

- Muitas vezes! Assim que cheguei aqui, tentei exaustivamente sair de qualquer forma que achasse possível. Esse lugar tem limites, e nosso acampamento fica perto de um deles. São muros gigantescos que parecem não ter fim. E já tentamos de tudo para derrubá-lo: usamos força bruta, inteligência, palavras mágicas, mas nada faz aquela maldita coisa cair. Parece que está colada ao céu.

- E já tentaram escalar o muro? – ela perguntou, curiosa.

- Até tentamos, mas é uma tarefa impossível. O muro é completamente liso. Não há nenhuma ranhura para nos segurarmos, e nada consegue perfurar aquilo. Então, é uma missão quase impossível.

Anna fez uma careta de frustração.

- Mas temos um plano novo agora, e tenho certeza de que esse dará certo.

Anna ia perguntar no que consistia o tal plano, mas, antes que o fizesse, os dois – três, levando-se em conta Zâner – chegaram ao acampamento. Anna arregalou os olhos, vendo que não eram necessárias mais perguntas para saber o que eles estavam tramando. A resposta estava bem ali, aos seus olhos.

Uma grande estrutura de madeira elevava-se a quase cinco metros de altura por três de largura. Todo amarrado com cordas e montado com madeira, a estrutura parecia delicada e precária. Em cima, três pás de madeira lisa giravam lentamente. Um homem encurvado, com aspecto de atarefado, dava um nó apertado em uma corda.

- Esse é o nosso novo equipamento de fuga. – disse Daniel, assim que chegaram. – Todo feito com derivados dessas madeiras que achamos: as cordas são feitas de fibras de madeira, as hélices são feitas de madeira lixada e cortada.

- Vocês pretendem... voar? – perguntou Anna, abismada.

- Exatamente. – Daniel respondeu, animado.

- E como vocês pretendem fazer isso... funcionar? A não ser que tenham feito um motor a base de madeira e um combustível a base de madeira, não sei como isso vai sair do chão.

- Quem és tu? – perguntou o homem que trabalhava no aparelho, limpando as mãos nas calças. – Daniel, quanto foste atrás da madeira estava só com Zâner. Quem é esta criança?

- Estava perdida, assim como nós. – ele respondeu. – Chame todos aqui. Quero apresentá-la. Acho que ela pode resolver o problema da máquina.

Antes que ela pudesse perguntar qual era o problema da máquina e como ela poderia resolvê-lo, todos já estavam ali. Eram homens em sua maioria – havia apenas duas mulheres no grupo – e todos pareciam incrivelmente envelhecidos, como se estivessem presos ali durante muito tempo. Olhavam para ela com olhos duvidosos e curiosos, como se a imagem de Anna lembrasse a eles de uma juventude esquecida há muito tempo.

- Como a achou, Daniel? – perguntou uma das mulheres, uma velhinha sorridente e animada.

- Ela simplesmente estava aqui, como todos nós. – ele respondeu. – Achei-a sentada perto dos limites do oeste.

- O que estavas fazendo lá, criança? – a velhinha perguntou.

- Não sei. Apenas estava lá. – Anna respondeu. – Vocês podem me dizer o que está acontecendo aqui?

- Já lhe disse, Anna, nenhum de nós sabe onde estamos nem porque estamos aqui. Mas estamos aqui, e temos que sair o quanto antes.

- E como eu posso ajudá-los?

- Traga a caixa, por favor.

Uma das mulheres entrou na tenda, saindo com uma caixa branca nas mãos logo em seguida. A caixinha brilhava intensamente, assim como os orifícios do céu.

- Essa é uma caixa de magia, Anna. – disse Daniel. – Veja bem: dentro de cada um de nós existe um pouco de magia, e é essa magia que vai fazer a máquina funcionar. Nós já estamos aqui há muito tempo, então nossa magia já não é mais tão poderosa nem suficiente. Mas, com você aqui, talvez consigamos. Sua magia é fresca, nova e poderosa. Se pudéssemos coletar apenas um pouco dela, talvez consigamos fazer a máquina funcionar.

- Como vocês pretendem sair daqui, caso consigam fazer isso funcionar?

- Segundo as escrituras de Thales, primeiro homem a habitar esse lugar, os orifícios no céu não são nada mais do que portais para o outro mundo. Talvez, se conseguirmos voar alto o suficiente, possamos sair daqui atravessando um desses portais!

- E a minha magia pode tirar vocês daqui?

- Não podemos subir todos de uma vez na máquina, mas se pelo menos dois de nós conseguirmos sair daqui, poderemos arranjar alguma forma de libertar os outros assim que possível.

- E como posso doar essa magia?

- É só concordar em doá-la. – disse Daniel.

- Tudo bem... – ela disse, olhando para todos, que tinham uma expressão apreensiva em seus rostos. – Eu concordo.

A mulher que tinha a caixa em mãos abriu-a, e logo Anna sentiu um puxão em seu peito. A energia, em forma de luz, passava de seu corpo para a caixa branca.

Assim que o fluxo de energia foi cortado do corpo de Anna, a mulher levou-a até a máquina. A caixa, ainda aberta, começou a despejar sua energia na estrutura de madeira. As hélices, no topo, começaram a se mover. A caixa desintegrou-se, dando sua energia integralmente para a máquina.

- Quem irá subir?! – gritou Daniel, vendo que as hélices começavam a rodar com maior intensidade e a máquina começava a se elevar.

- Subam você e a menina! – gritou um dos homens. – Se não fossem por vocês, nunca teríamos sequer a esperança de ir embora!

Sem pensar duas vezes – o tempo era escasso demais para se discutir questões diplomáticas – os dois sentaram-se na máquina. Zâner, assustado, pulou ao colo de seu pai, miando estridentemente.

- Nós voltaremos! – gritou Anna, ao ver que a máquina estava funcionando e que subia cada vez mais rápido. – Vamos encontrar alguma forma de tirar todos vocês daqui!

- Ficarmos esperando! – foi a última coisa que ela ouviu um dos homens dizer antes da máquina ser sugada por um dos grandes círculos brancos.

A máquina despedaçou-se em centenas de cacos com a força dos ventos. Os três voavam descontroladamente, mas logo tudo começou a equilibrar-se. Quando Anna percebeu, estava planando. Não tinha mais olhos, mas conseguia ver perfeitamente: dois pontos luminosos, que, assim como ela, voavam desenfreadamente. Foi quando ela percebeu que também era um ponto luminoso.

Olhou para baixo, vendo uma enorme superfície amarelada repleta de furos.

- Fadinhas, minhas fadinhas, já não lhes dou toda a madeira de que necessitam para sobreviver? Por que fogem de mim, minhas fadinhas?

Duas mãos do tamanho de casas pegaram e elevaram a superfície amarelada. Anna percebeu que era uma caixa imensa, repleta de furos. As mãos sacolejaram a caixa.

- Por que fogem de mim, minhas fadinhas?! Já me deram tanto trabalho para capturá-las, e ainda fogem de mim?! Por que fogem? POR QUE FOGEM?!

Anna voou para longe, assustada com aquela figura. Agora tudo estava mais claro: a memória voltara ao normal, e ela lembrava-se de tudo o que havia acontecido. Junto com Daniel e Zâner, voou o mais rapidamente que pode até a colônia de fadas mais próxima. Precisava alertar as irmãs e juntar forças para resgatar os que ficaram para trás. Havia dito que iria libertá-los, e cumpriria com sua palavra o mais rápido que pudesse. Não iria deixar as outras fadas nas mãos daquela terrível criatura.

sexta-feira, 12 de junho de 2009

Um Parágrafo

Em uma epifania saramaguiana dentro de um momento soturno, escrevi esse parágrafo. Aqui está:

**

Tenho a missão de escrever um parágrafo. Sim, um parágrafo, foi o desafio que me fiz. Escrever uma história boa em uma única sequência de pensamentos, sem interrupções ou respirações. Sim, um pouco Saramago; sim, um pouco maluco e sem pé nem cabeça. Mas aqui estou eu, e aqui está a história. Sim, ainda não percebeu que ela já começou? Trata-se da história de um garoto que, sem mais nem menos, enquanto ouvia uma música e vegetava na frente do computador, resolveu escrever um parágrafo. Esse garoto nunca foi muito diferente dos outros, nem teve problemas maiores do que os dos outros. É bem certo que tivesse fantasmas que vez ou outra assombravam seus pensamentos com ideias fixas e depressivas. Mas, afinal, quem não os tem? Eles estão sempre lá, assombrando ele quando menos espera, e estavam rodeando suas memórias quando ele decidiu escrever o tal parágrafo. O garoto não sabia bem como eles se instalavam lá – na verdade, ele acreditava que os fantasmas tinham um período certo para ficarem ali, mas nunca fora bom o suficiente para marcar os minutos –, mas ele sabia quando eles estavam lá. Não percebia quando chegavam, apenas quando já povoavam seus pensamentos. Ele perguntava “porque estou me sentindo assim?” para ele mesmo, e então ele respondia “ah, são os fantasmas”. Incorpóreos e completamente silenciosos, os tais fantasmas pintavam e bordavam com aquele garoto. Vinham mostrar-lhes seus traumas de infância – que, é claro, não serão revelados, pois pertencem a ele e apenas a ele; nenhum psicólogo metido a besta seria capaz de tirá-los de lá – e riam e se divertiam quando viam que aquele garoto os levava a sério. Eram brincalhões e maldosos, esses tais fantasmas, travestidos de seus maiores medos e seus maiores anseios, tanto passados quanto futuros. Pois é, lá também estavam os fantasmas do futuro, os mais assustadores, com suas bocas escancaradas a rirem sem parar. Os do futuro talvez ainda fossem mais cruéis, posto que tinham a vantagem de deixá-lo amedrontado. Iam e viam e diziam que ele nunca seria um grande homem, que seus sonhos de fama e riqueza eram pura especulação de um adolescente sonhador, que não passaria de mais um, lembrado apenas por seus pais e seus parentes mais próximos. E ele se preocupava, e se corroia por dentro, acreditando naqueles malditos espíritos, naquelas vozes que troçavam com um sem fim de piadas e anedotas engraçadas somente entre eles. “Eles não teriam razão?”, o garoto perguntava-se, temendo por seu futuro. Via pessoas da sua idade muito mais bonitas e bem-sucedidas – é claro que também via as feias e mal-sucedidas, mas esses poucos importavam – e se perguntava por que ele não era assim. Via todos tirando fotos com amigos eternos, e se perguntava porque não tinha um desses. Sim, tinha amigos e colegas – confiava em quase nenhum, é claro – mas não sentia esse laço de amizade tão estreito que muitos afirmam ter. O que, então? Todos mentiam, ou era apenas ele? Não entendia como as outras pessoas conseguiam fazer e desfazer amizades eternas com tanta facilidade – bons amigos num dia, inimigos mortais no outro. Realmente, ele não entendia – e nem como eles conseguiam ser tão felizes. Não acreditava nessa felicidade plena; não essa que é indissolúvel, que não quer acabar por nada, que, não importa o que aconteça, continua inabalável. Não, isso simplesmente não existe! Ninguém – e com veemência ele sublinha isso – ninguém pode ser tão feliz o tempo todo! Não dá, simplesmente não dá pra sorrir o tempo todo! A vontade que ele tem agora é de pular a linha e começar outro parágrafo – eu sei, eu conheço ele muito bem – mas ele não vai apertar o “ENTER”. Ele vai continuar nessa mesma linha, e por mais desagradável que seja, ele não pode mudar de assunto assim, sem uma ponte de ligação. Então ele continuará falando dessas felicidades ilusórias e dessas amizades eternas. E ele vai ouvir músicas e tentar pensar em algo mais a dizer, mas a partir desse momento as palavras começarão a falhar; as mãos correrão com mais dificuldade pelas letras, e enfim ele poderá pensar: é, talvez o parágrafo esteja chegando ao fim. Não há mais ideias, não há mais assuntos. Há um momento em que o telefone precisa voltar ao gancho, que o computador precisa ser desligado, que a conversa precisa terminar. Até mesmo os bons livros e os bons filmes têm um fim – tirando essas continuações hollywoodianas incansáveis – então porque não terminar logo esse parágrafo de uma vez? Essa confusão de palavras e pensamentos amarrotados de um jeito bagunçado mas ainda assim coerente, essa torrente de pensamentos soturnos e vazios, esse desabafo de uma mente em crise temporária. É, porque continuar com isso? Os problemas desse garoto não são os maiores do mundo – ele não tem nenhum membro do corpo decepado, nem chora a perda de algum familiar pela guerra. Talvez esses fantasmas sejam apenas mais um problema. Não foi o primeiro, não será o último. Mas esse, diferente dos outros, foi registrado. Quem sabe os fantasmas se cansaram de tanta verborragia e decidiram partir? Ele se sente melhor – eu sei, eu já disse que conheço ele –, bem o bastante para bocejar e estalar os dedos. Ele quer terminar isso, mas agora as palavras não deixam. Ah, vamos lá, palavras, façam um esforço! Parem de aparecer e digam logo: fim. FIM.

terça-feira, 2 de junho de 2009

Seja Feita Vossa Vontade

Anjos e demônios são criaturas já conhecidas no meio literário: os anjos, com suas lanças celestiais e suas harpas, suas asas brancas e sua integridade divina e imaculada; e os demônios, com suas artimanhas que visam, acima de tudo, prejudicar ao próximo em benefício próprio.

Uma imagem um tanto quanto típica, não? O anjo bonzinho, o demônio malvado. Aquela mesma velha história de sempre, onde - na maioria avassaladora dos casos - o bem triunfa sobre o mal; onde o mal não tem motivos para cometer atrocidades; onde o bem não se corrompe nem se deixa levar. Uma imagem desgastada e constantemente usada quando se trata deste assunto.

Com a proposta de modificar o lugar-comum e os esteriótipos desgastados, a editora Multifoco lança, no próximo dia seis de junho (06/06/09), a antologia "Fiat Voluntas Tua - Por Anjos e Demônios". Fiat Voluntas Tua é o latim para "Seja Feita Vossa Vontade", e é disso que as organizadoras Monica Sicuro e Rúbia Cunha se valem: essa vontade insaciável de buscar pelo novo; de quebrar com as estruturas preconcebidos - ou de utilizá-las de forma inteligente e original; de encabeçar uma antologia que, a princípio, pode parecer apenas mais uma, mas que tem um trabalho magnífico, desde a escolha dos autores até a diagramação de cada palavra.

Sou um dos autores que compõem a antologia, e cabe aqui um comentário particular para dizer o quão honrado estou em poder participar de uma iniciativa como essa. Mesmo com os eventuais problemas técnicos que sempre ocorrem - isso não é problema algum, ao menos não para mim - sei que tanto a Monica quanto a Rúbia deram tudo o que tinham de melhor para fazer deste um livro memorável. E tenho certeza de que todo o esforço não foi em vão.

Fiat Voluntas Tua - Por Anjos e Demônios


Organizadoras: Monica Sicuro e Rúbia Cunha
Editor: Frodo Oliveira
Editora Multifoco - Selo Antologhy
Lançamento: 06/06/09
Preço: R$25,00