terça-feira, 11 de agosto de 2009

Globo de Neve

Pra espantar as moscas do blog, vou postar meu conto mais recente. Espero que se divirtam!

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Globo de Neve
por Lucas L. Rocha


Minha vida é lenta. Absurdamente lenta. Pegue todos aqueles dias de tédio que você já teve na sua vida – não se esqueça, em particular, dos domingos e das segundas-feiras – e junte-os. Agora multiplique esse valor por um número consideravelmente grande, e talvez você possa perceber como me sinto. E acredite em mim: você não iria querer estar em meu lugar, não importa o seu grau de loucura.

Você provavelmente deve estar se perguntando: ‘tudo bem, mas onde você vive para ter uma vida tão ruim?’ Pois eu te digo: em um globo de neve. Exatamente. Pode rir de mim, se quiser. Vivo em um objeto tão sem graça e sem função que você deve ter um e sequer percebe que ele existe – a não ser que o Natal esteja por perto, é claro.

Vivo em uma prateleira enfadonha, em um quarto enfadonho onde uma garota enfadonha passa a maior parte do tempo livre. Sempre dei bastante atenção a ela – não tenho muito o que fazer, o que me torna um ser extremamente fofoqueiro – e não era de hoje que havia percebido que ela estava estranha. A princípio, pensei que fosse coisa de adolescente: aquelas roupas pretas, aqueles livros de ocultismo e aquele cabelo sujo e despenteado.


Só nunca passou pela minha cabeça que ela estivesse envolvida com bruxaria.


Por algum motivo especial, ela conversava comigo. Não que eu pudesse responder, é óbvio que não posso. Eu sei, é bastante estranho, mas o que você quer que eu faça?


- As pessoas não me entendem, Londres... – ela dizia, pegando-me da prateleira e sacudindo o globo ininterruptamente (ah, como eu a odeio quando faz isso!) – Papai e mamãe acham que eu sou uma adolescente rebelde, todos do colégio me irritam... por que isso acontece?


E ficava olhando para mim, esperando por uma resposta.


- Mas as coisas vão mudar, ah, se vão! – ela disse, jogando o globo de uma mão para outra (e eu imaginava a bagunça na qual estava se transformando minha casa). – O Heitor vai vir aqui amanhã, a gente vai se divertir. Ele vai me contar alguns segredos da bruxaria, e disse que depois disso eu nunca mais vou ver o mundo com os mesmos olhos.


Heitor é um tipo de mentor. Deve ser um rei dos bruxos ou alguma coisa do tipo. Essa menina fala dele o tempo todo, como se o cara fosse o Apolo em pessoa.


- Eu vou te deixar aqui para ouvir os segredos, tá? – ela levantou da cama e colocou o globo de volta na estante – Só não faça barulho: tenho certeza que o Heitor vai ficar puto se descobrir que alguém além de mim está ouvindo.


Por mim, tudo bem. Não acredito nessa história de bruxaria mesmo.


Pelo menos não acreditava, até que Heitor chegou no dia seguinte.


Era um cara alto e esguio, de vinte e poucos anos. Tinha os cabelos na altura dos ombros e os olhos mais verdes que já vi na minha vida. Um cigarro fumegava entre os dedos, enquanto ele entrava silenciosamente no quarto.


- Hm, isso daí é Londres... – ele murmurou, como se tivesse chegado a conclusão mais brilhante do mundo, batendo no globo de neve e encarando a réplica do Big Bang que, por acaso, é a minha casa. – Você já foi lá?


- Que nada... minha tia me deu isso aí de presente no Natal do ano passado. – ela respondeu com um tom de voz impessoal, tentando fazer o tipo ‘eu não me apego a coisas materiais’. Até parece.


Ele pegou meu globo e, para minha profunda infelicidade, sacudiu-o.


É sério: ele não tem nenhum boneco de voodoo pra espetar ou um gato pra estripar não?


- Você sabe que é uma garota muito sortuda, não é, Lúcia? – ele perguntou, jogando o globo de neve para ela, que agilmente pegou-o. – Não é sempre que um mestre em bruxaria se dispõe a ir à casa de uma aprendiz contar-lhe tantos segredos.


Ela apenas o olhava, os olhos brilhando em admiração.


- E sabe que vou cobrar meu preço para poder lhe revelar esses segredos, não é?


Senti que o globo, seguro em uma das mãos de Lúcia, tremia.

- Você é virgem, não é, Lúcia?

Epa.


- Não, não, não... – ele apressou-se a dizer, assim que os olhos dela se esbugalharam em pânico. – Não quero sua virgindade em troca dos segredos. – ele riu, tentando amenizar o clima pesado que, acidentalmente ou não, acabou criando. – Eu preciso do seu sangue. Só um pouco dele.


A expressão dela passou de assombro para dúvida.


- Quanto você consideraria ‘pouco’? – ela perguntou. Não acredito que ela estava realmente levando em consideração o que aquele pirado falava. – Tipo, uma gota ou duas.

- Exatamente. – ele disse, aproximando-se. Tragou o cigarro pela última vez e deu um peteleco, jogando-o pela janela. – O suficiente para abrirmos o portal para o outro mundo. Vem aqui. – ele disse, ajoelhando-se.

Ela obedeceu, ainda segurando o globo.


O tal do Heitor começou a desenhar no chão com um pedaço de giz que tinha no bolso. Fez um círculo e uma estrela, uma confusão de símbolos que eu não conseguia identificar.

- Sabe por que eu escolhi você, Lúcia? – ele perguntou, colocando o giz no bolso.

- Por que eu sou virgem? – ela tentou.


- Além disso... – ele olhou para cima, olhos fechados, inspirando o ar como se estivesse em um campo de crisântemos. – Você exala algum tipo de magia que eu reconheço.


Ela, exalando magia? Deve estar de sacanagem.


- Os segredos começam aqui, portanto preciso saber se você será leal e não os contará para ninguém.


- Palavra de escoteiro. – ela disse, animada, levantando a mão livre.


- Há... – ele disse, como se fosse um professor. – ...em nosso mundo, criaturas que regem a magia. São seres que podem parecer insignificantes e pequenos, mas carregam dentro de si uma carga incrível de poder.


- Tipo os gnomos e as fadas?


- Esses são os nomes que eu europeus deram a eles. Eu prefiro chamá-los de seres mágicos, pura e simplesmente. Eu mesmo já tentei pegar uma criatura dessas, mas ele era tão poderoso e cheio de artimanhas que acabou me escapando assim que teve a oportunidade.


Eu não sabia se ria da cara daquele aprendiz de Draco Malfoy ou se prestava atenção às palavras dele. Era uma história bastante interessante, se quer minha opinião.


- Como você sabe de tudo isso?


- A criatura que tentei capturar me contou algumas coisas antes de virar fumaça. Os seres que vivem entre nós geralmente não sabem o potencial que têm, acho que sequer sabem que são mágicos. Na maioria das vezes, cometem algum crime no mundo deles e acabam parando aqui, desmemoriados e trancafiados em algum objeto irrelevante.


Epa, epa, epa. Mil vezes epa. Que papo era aquele?


- E, quando eu estou perto de você, sinto a mesma coisa que sentia quando capturei aquele ser por alguns segundos. É em intensidade menor, como se você exalasse um rastro de magia. Mas agora, aqui dentro, tenho a sensação plena novamente.


- E o que vamos fazer hoje? Tentar pegar uma criatura dessas?


- Eu acredito que ela está aqui no seu quarto, em algum lugar. Eu consigo sentir.


Tudo bem, isso está começando a me assustar. EU vivo em um objeto irrelevante, EU não tenho a mínima ideia de como vim parar aqui e EU tenho certeza que não tenho nenhum poder mágico. Certo?


- Eles são loucos por sangue de virgens. – disse Heitor, puxando a mão livre de Lúcia e tirando um estilete do bolso. – Fique calma, é só uma gota.


Ela estava animada demais para deixar o medo tomar conta dela. Cedeu a mão com tranquilidade, enquanto eu olhava para os dois, cheio de dúvidas.


No instante em que ele cortou o dedo dela, alguma coisa tomou conta de mim. Vi aquela gota minúscula caindo lentamente. Minha respiração acelerou, meus olhos brilharam, senti uma vontade imensa de arrebentar aquele vidro e alcançar o sangue o mais rápido que pudesse.


Foi em uma intensidade tão grande que não me controlei. Corri até o vidro, socando-o com violência, tentando quebrá-lo.


Inútil, é claro.


Lúcia soltou o globo, assustada. Deu até um gritinho.


- Esse troço, sei lá, ele... vibrou! – ela disse, enquanto o globo rolava para baixo da cama. Eu ainda estava inebriado pela cor, cheiro e beleza daquela gota no meio do desenho de giz. – Você está me assustando, Heitor!


Ele enfiou-se debaixo da cama e pegou o globo. Chacoalhou-o mais uma vez – nem dei bola, tão louco estava por aquele sangue –, tentando ver alguma coisa lá dentro.


- Descobrimos... – ele disse. Depois impôs a voz, como um locutor de rádio. – Tudo bem, criatura mágica. Não queremos fazer mal a você.


Ele colocou o globo no meio do desenho de giz metodicamente, como se soubesse exatamente o que estava fazendo, e então uma coisa extremamente estranha aconteceu: eu comecei a brilhar. Na verdade, o globo todo começou a brilhar. Era alguma coisa dentro de mim, tenho certeza. Alguma coisa a ver comigo e com aquele círculo de giz.


De súbito, o brilho apagou-se. O quarto voltou a tranquilidade e ao silêncio, e o cheiro do sangue parecia mudar de direção.


Virei o pescoço, seguindo o odor inebriante.


Os dois estavam na minha frente, do mesmo tamanho que eu, dentro do globo de neve.


- Esse cheiro é maravilhoso... – eu disse, de olhos fechados. Não me perguntava como eles haviam chegado ali nem o que faziam. Só queria o sangue. – Me dê um pouco, um pouquinho só.


- Em troca de uma promessa, criatura. – disse Heitor, como se tivesse ensaiado aquele discurso inúmeras vezes. Segurava o dedo cortado de Lúcia, impedindo que qualquer gotícula de sangue escapasse. A menina estava verdadeiramente aterrorizada, mas eu pouco me importava com aquilo no momento.


- Qualquer coisa, qualquer coisa... – eu disse. – Me dê só uma gotinha, só umazinha...


- Prometa lealdade a mim.


- Tá, prometo, prometo! – falei, sem ao menos pensar. – Agora me dê esse sangue!


- Você o pegará do lado de fora. – Heitor disse, andando até mim lentamente. Eu não tinha ação, comportado, esperando pelo sangue como um bom menino espera para abrir os presentes de Natal.


- Heitor, o que você está fazendo? – Lúcia perguntou. A voz dela soava genuinamente assustada agora.


- Indo embora, querida. – ele disse, soltando-a. Pude sentir o cheiro do sangue saindo da ferida dela. Maravilhoso. – Esperei por esse momento durante muito tempo! Não vou deixar essa criatura escapar como a outra me escapou!


- Do que você está falando, Heitor?


- A outra menina disse que era virgem, mas ela mentiu! – ele disse, aproximando-se de mim e segurando meu braço. Tentei avançar até a garota, mas ele segurou-me com força. – Por isso a outra criatura escapou. Mas essa daqui não vai me escapar, certo, Lúcia? Você não mentiria para mim, mentiria?


Ela arregalou os olhos, em pânico.


- Sangue, eu quero o sangue! – era tudo com o que eu me preocupava.


- Do lado de fora. – ele disse mais uma vez. – Sua lealdade está jurada, não se esqueça. Uma criatura mágica por uma virgem genuína, a troca está feita.


Ao fim das palavras de Heitor, aquela luz em mim brilhou novamente.


Quando abri os olhos, estava ensopado, caído em meio ao desenho de giz no chão. Arrastei-me até debaixo do globo, seguindo
o cheiro daquela gota de sangue.

Heitor acordou logo depois. Pegou o globo de neve e guardou-o no bolso. Não havia nenhum rastro de Lúcia naquele quarto.


- A troca deu certo... – ele murmurou, como se não pudesse acreditar que aquilo realmente acontecera. – Vamos, criatura! Você não vai me escapar como a outra. Agora eu sou seu mestre, não esqueça seu juramento.


Obedeci, assustado com a minha solicitude instantânea. A voz dele era hipnotizante; não havia como dizer não. Fomos embora rapidamente, antes que alguém desse pela falta da garota.


Percebi que havia me metido em uma enrascada das grandes.


Tarde demais para me arrepender, pensei comigo mesmo. Pelo menos não precisava mais me preocupar com o tédio ou com as chacoalhadas eventuais no globo de neve. Lúcia que se preocupasse com elas, a partir de agora.

2 comentários:

  1. Ufa! Só você mesmo para escrever coisas tão colossais assim, haha! Ficou excelente, adorei mesmo!

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  2. Hueeheuheu, já falei que nem é tão grande assim!

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