domingo, 27 de junho de 2010

Grande Vazio

De vez em quando me sinto preso dentro de mim mesmo. Não é uma sensação ruim, na verdade; é como se eu pudesse explorar cada detalhe mínimo de mim mesmo e pudesse dizer de uma vez por todas quem eu sou ou do que sou feito. Não é uma tarefa fácil, no entanto: cada reentrância e cada canto obscuro e cheio de teias de aranha é como um novo filme, uma nova música, uma nova história. Cada partícula tem uma história longa e chata para contar. Posso, em um momento, estar atravessando uma rua de papel sulfite e, em outro instante, estar voando em um céu de gelo liquefeito. Sim, minha mente tem dessas loucuras que ninguém consegue explicar (e acho que deve ser assim com todo mundo).

E por vezes – alguns dias mais do que outros – me pego pensando no Grande Vazio. Um vazio sem nome ou explicação, que chega e aparece sem pedir licença, e que vai embora tão rapidamente quanto vêm. É uma sensação estranha, essa do vazio: é como se você não tivesse motivos para rir, mas mesmo assim risse; sem motivos para chorar, mas mesmo assim chore. Pior ainda é rir chorando ou chorar rindo, como explicar?

O ser humano tem dessas coisas inexplicáveis. Coisas que nem a nossa vã filosofia pode explicar, por mais que tente.

quinta-feira, 24 de junho de 2010

A Faca do Mendigo


Hoje vi um mendigo sentado na calçada. Era um mendigo como outro qualquer: sentado de pernas cruzadas no chão, coberto com sua manta imunda e rodeado de seus apetrechos essenciais – entre eles, o resto de uma quentinha que alguém não quis, uma caneca de alumínio cheia de água suja e uma coleção de restos de cigarro encontrados ao longo de seus passeios – ele tinha os olhos perdidos em algum lugar distante. O cabelo era sujo, desarrumado e fétido; a barba, grisalha e desgrenhada, parecia guardar segredos profanos demais para serem desvendados.

Eu não daria muita atenção a ele, não fosse o fato de que o dito cujo tinha uma faca em mãos. Não uma faca daquelas de cozinha, com serrinha e ponta arredondada, mas uma faca de açougue, de cabo branco e lâmina reluzente, que brilhava em contato com a luz do sol. Como ele conseguiu aquela arma, só Deus saberia responder. Deve ter achado no lixo, provavelmente, junto com sua comida e suas roupas, com todas as suas posses e todo o seu ouro. Girava a faca de um lado para o outro, rindo como um louco – ele falava sozinho e gritava vez por outra, mas ninguém nunca lhe dava muita atenção –, cantando uma música de Natal e obrigando todos os transeuntes a atravessarem a rua para que não fossem uma potencial vítima de sua loucura.

Percebi que um policial, ao constatar que o louco ainda não cansara de suas loucuras e que provavelmente ficaria girando aquela faca durante muito tempo, foi até ele. Não sabia muito bem o que fazer ou como agir: a academia nunca lhe ensinara a lidar com mendigos que empunhavam facas no meio de uma tarde ensolarada. Tentou gritar com ele, como se faz com os cachorros vadios, dizendo “Porra, para com essa merda, seu vagabundo!”, mas aquilo não pareceu surtir muito efeito, pois o mendigo continuou com sua diversão particular.

Então o policial resolveu agir. Rápido como uma cobra, pegou o pulso do meliante e bateu com ele no muro de chapisco, obrigando-o a largar a faca. Nisso, uma pequena multidão se juntou aos poucos olhos curiosos para saber o que diabos estava acontecendo. Logo começaram os burburinhos: “o mendigo ia assaltar uma moça com a faca e o policial chegou e parou ele”; “o policial deu a faca pro mendigo abrir uma lata de feijão e o mendigo ameaçou ele”; “o mendigo estava ameaçando o policial e ele resolveu agir”, todos comentando o ocorrido enquanto o mendigo choramingava, sem saber muito bem o que acontecia ou porque todos estavam olhando para ele e lhe dando tanta atenção.

Finalmente o policial conseguiu imobilizá-lo, fazendo cena ao perceber que uma pequena plateia o observava e dizendo teatralmente “está tudo sob controle!”. Todos bateram palmas e vibraram pela coragem e bravura daquele que prometeu proteger e servir. E o mendigo, coitado, foi levado para uma viatura e encaminhado para a delegacia, e apenas posso presumir qual teria sido seu triste destino.

O mendigo seria o assunto do dia para alguns. Mas, para mim, seria apenas a constatação de que ele cometeu o único erro que nunca poderia ter cometido: fez-se perceber em um ambiente no qual tinha tanta importância ou notabilidade quanto uma samambaia ou um hidrante.