sábado, 15 de maio de 2010

A importância da literatura fantástica

Posso estar enganado, mas acredito que cerca de 80 ou 90% dos nossos eruditos literários parecem deixar categorias como fantasia, ficção científica e terror em um patamar marginalizado, como se tais gêneros fossem inferiores a dramas realistas, romances ou metáforas metalinguísticas. O próprio rótulo ‘fantasia’ já vem carregado de inúmeros pré-conceitos: a simples menção ao nome remete boa parte dos leitores mais tradicionais a histórias com magos e dragões, elfos, raios brilhantes e criaturas que, com palavras mágicas, podem resolver quaisquer problemas que se ponham à sua frente.

Negar que a fantasia seja importante para a humanidade é como querer negar a importância da água para a fisiologia humana. Desde cedo, somos criados para acreditar em seres como coelhos que espalham ovos de chocolate mundo afora, velhinhos que descem por chaminés – mesmo quando moramos em apartamentos que mal possuem janelas – e monstros que vivem embaixo da cama, prontos para atacar assim que as luzes se apagam. Impedir que uma criança deixe de crer em monstros, fadas, sacis pererês ou seja lá que sorte de fantasias ela queira acreditar é um desestímulo à sua imaginação.

Mas aí vem a adolescência e, logo em seguida, a vida adulta. É quando os problemas começam a se avolumar, o tempo se escasseia e os sonhos e fantasias parecem cada vez menos importantes para a vida cotidiana. O dinheiro passa a ser o coelho da páscoa e o papai Noel, e os unicórnios e ciclopes já não parecem assim tão interessantes. Tudo o que importa, agora, é conviver com as malezas e as dificuldades da realidade, que parece sempre mais cruel.

E isso acaba se refletindo na literatura. Não é à toa que livros com temas considerados ‘de fantasia’ são sempre (ou quase sempre) taxados de infantis ou infanto-juvenis, não importa sua carga sexual ou os baldes de sangue e vísceras que os personagens espalhem ao longo das páginas. Vender uma história com anjos e demônios para crianças e adolescentes – por mais nebulosas e complicadas que as relações estabelecidas no texto possam ser – é muito mais simples do que convencer leitores mais tradicionais de que aquele livro, que trata de seres sobrenaturais, pode ser tão bom quanto o que aborda a realidade cinzenta da sociedade brasileira.

Parece que há uma convenção preestabelecida ditando que livros dentro desses gêneros são piores do que outros. E, quando uma história, por algum motivo qualquer, carrega em si alguma característica fantástica, suas qualidades são sempre atribuídas às metáforas e mensagens que passam. Tomemos por exemplo o livro de José Saramago, ‘Ensaio sobre a cegueira’. Há alguma dúvida de que o livro seja de fantasia? Não para mim. Vejam: em uma cidade sem nome, uma epidemia de cegueira branca afeta a população, que passa a ter de conviver com suas novas limitações de vida. A sinopse me parece bastante fantasiosa, mas o livro, com toda a sua crítica positiva e a legitimação de um prêmio Nobel, nunca foi rotulado como ‘de fantasia’.

Aí está. Sim, considerado ‘Ensaio sobre a cegueira’ um livro altamente fantástico, mas isso não tira nenhum de seus méritos. Porque, no fim das contas, a fantasia serve para isso mesmo: passar, através de outros meios, uma mensagem. Seja de esperança ou desesperança, de luta, honra, coragem ou uma crítica social mascarada de ficção científica. Dizer que fantasia é ruim porque é ‘irreal’ é ter uma mente extremamente fechada a diferentes tipos de exposição de uma ideia. Querer crer que os livros considerados ‘realistas’ ou ‘não-fantásticos’ sejam, por excelência, melhores do que os considerados ‘fantásticos’, julgando apenas o gênero no qual se encaixam – ou no qual algum editor o encaixa – é extremamente prematuro e, arrisco a dizer, até mesmo uma proposição idiota.

Ninguém esquece os monstros no armário e o medo do que poderia acontecer quando as luzes apagavam. E crescer continuando a acreditar que monstros podem servir de lição a ponto de se tornarem tão importantes para expor uma ideia é acreditar que a fantasia é – e ela o é, de fato – tão importante para a literatura quanto qualquer outro tipo de gênero literário.

segunda-feira, 10 de maio de 2010

"Feliz Ano Novo", Rubem Fonseca

Nunca dei muito valor aos autores nacionais. Não sei exatamente o motivo: se é um tipo de repulsa involuntária, se descaso ou simplesmente falta de publicidade ou preços acessíveis aos livros brasileiro. No fim, tudo não passa de desculpas esfarrapadas, eu sei. Por isso estou tentando reverter esse processo degenerativo.

Já ouvi o nome Rubem Fonseca uma dezena de vezes – o cara é um dinossauro da literatura brasileira e seus livros são muito bem vendidos e criticados, obrigado –, mas parei realmente para prestar atenção ao nome após uma entrevista da escritora do livro ‘Gonzos e Parafusos’, Paula Parisot. O repórter fez uma pergunta acerca da troca de Rubem da editora Companhia das Letras para a Record, uma fofoca literária que dizia que a autora era a culpada pela tal troca. Ela disse que não e nada mais a declarar. Mais tarde, durante o tal do ‘bate-bola-jogo-rápido’, o repórter pergunta a ela: Raymond Chandler ou Rubem Fonseca?, e ela, rindo, responde: alguma dúvida? Rubem Fonseca!

Aí está. Não, nunca li Raymond Chandler – uma deficiência que pretendo suprir o quanto antes –, mas sou fascinado pela estética noir e pelos romances policiais. Tal comparação atiçou meus neurônios para ler o tal Rubem Fonseca. Nunca tinha lido nada nacional que rodasse no tema da literatura policial, e como precisava ter uma ideia de como giram os personagens pelas marginais paulistas e calçadões cariocas, resolvi que seria uma boa ideia lê-lo.

Comprei o livro que agora tenho o prazer de resenhar, ‘Feliz Ano Novo’, juntamente com ‘Agosto’, do mesmo autor, ‘Ed Mort e outras histórias’, uma coletânea de contos de Luis Fernando Veríssimo e um outro que já não me recordo o nome, sobre a história de Zuzu Angel, todos rodando pelo tema policial. Resolvi ler ‘Feliz Ano Novo’ em primeiro lugar. Não posso dizer que me arrependi. Nem um pouco.

O livro é uma união de contos, uns maiores, outros menores, mas todos muito rápidos, transitando sobre temas um tanto quanto impactantes a primeira vista: logo no primeiro conto – que dá título ao livro – somos apresentados a um bando de ladrões que discute irrelevâncias antes de partir para algum assalto na véspera de ano novo. Logo segue-se a ação, com uma sequência final bastante, er... não há outra palavra: impactante.

O livro gira em torno de ladrões, prostitutas, homens mal-amados e incompreendidos, mulheres inconsequentes e amarguradas. Não há um continuum ou algo que ligue os contos além da imundície – seja ela literal ou subjetiva – onde os personagens se encontram mergulhados: sempre desesperançosos, sempre à beira de um colapso ou sem um tostão no bolso. Os contos são bruscos, um choque à pacificidade do dia a dia, uma chacoalhada nos nervos e nas opiniões sobre quem pensa que o mundo é um lugar colorido e bonito de se viver.

‘Feliz Ano Novo’ é um livro que deixa atrás de si marcas para quem lê: seja para quem mastiga cada conto e extrai dele todos os seus significados e simbolismos, seja para quem – como eu – lê apressadamente no ônibus, com fones no ouvido e pessoas conversando em todos os lados. Não creio que o livro tenha uma mensagem definida ou alguma lição de moral para ser passada, não acredito que seja sua função, mas creio que, mesmo involuntariamente, ele deixa nem que seja uma nota de rodapé no subconsciente da gente: ‘o mundo não é bonito, fique sabendo. Ele é um lugar cheio de dores e de gente pronta para te sacanear à mínima piscadela. Portanto, fique alerta’.

Um soco na boca do estômago, acho que essa é a melhor forma de tentar definir o livro ‘Feliz Ano Novo’. Não é à toa que se trata de um livro altamente lido e bem criticado. Vale a pena ler cada parágrafo.